• Edição 069
  • 08 de fevereiro de 2007

Faces e Interfaces

Célula-tronco em líquido amniótico tem aprovação de religiosos


Kareen Arnhold - Agn / Praia Vermelha

Vivemos um momento necessário e importante de "garimpagem científica", com o avanço significativo da ciência pelo mundo. Porém, por afetar direta e indiretamente a vida de todos os seres vivos, os procedimentos e rumos que este campo toma devem tornar-se, cada vez mais, objeto de reflexão, por parte da comunidade científica e de toda a sociedade.

Uma das vozes sociais que promove este tipo de reflexão, que questiona certos parâmetros adotados pela ciência, é a religião, vista como um importante fator de oposição a muitos métodos e procedimentos científicos, como a pesquisa com células-tronco embrionárias, por exemplo, repudiada por religiosos, que a vêem como um desrespeito à vida humana.

A descoberta de células-tronco de potencial terapêutico a partir do líquido amniótico da placenta animou a comunidade religiosa, que mostrou-se satisfeita pelo novo método não danificar órgãos, tampouco discriminar a vida. No entanto, embora represente um grande avanço no campo da moral, esta nova possibilidade - cuja real capacidade ainda não pode ser avaliada - não elimina a necessidade dos estudos com células-tronco embrionárias. O que os cientistas propõem, então, é o avanço nas pesquisas com as células descobertas, sem, no entanto, abrir mão do trabalho já realizado com as células-tronco embrionárias. Ou seja, a discussão entre ciência e religião ainda não chegou ao fim.

Para refletir sobre a importância das diferentes vozes sociais, principalmente a da religião, nos rumos da ciência e das pesquisas sobre células-tronco, a Olhar Vital convidou profissionais do Centro de Ciência e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CCS/UFRJ): a professora Eliane Brígida Morais Falcão, do Laboratório de Estudos da Ciência (LEC/NUTES/UFRJ), em que desenvolve o projeto Ciência e religiosidade: crenças religiosas entre cientistas: estudos comparados; e o pesquisador Stevens Rehen, do Laboratório de Neurogênese e Diferenciação Celular (LANDIC), do Departamento de Anatomia da UFRJ, que trabalha pesquisas sobre a geração de neurônios e células gliais a partir de células-tronco.

Eliane Brígida Morais Falcão

Professora do Laboratório de Estudos da Ciência)  do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (LEC/NUTES/UFRJ).

 “Em se tratando de religião e ciência, não há como se estabelecer uma hierarquia, visto que são dimensões distintas da cultura, pertencentes a um mundo plural. Sendo a mente e a cultura humanas tão diversificadas, o que, aparentemente, parece incompatível, pode não ser. A liberdade de interpretar o mundo e adaptar-se a ele tem uma infinidade de formatos. No entanto, sabemos que em ambos os lados há pessoas que pensam que a crença religiosa vale mais que a ciência ou que a ciência vale mais que a crença religiosa.

Neste aspecto, é importante ter em mente que ciência e religião não existem para se confrontar; ambas têm seu campo específico, têm sua legitimidade e encontram-se bem estruturadas. Portanto, não há que haver disputa; é possível aceitar bem as explicações da ciência sem abrir mão de uma crença religiosa. Por outro lado, se não existe uma compreensão da distinção desses dois campos da cultura, muitos conflitos desnecessários são produzidos, gerando algo que não é desejável na vida acadêmica: o negar-se a falar sobre o assunto. A ciência não precisa negar as crenças religiosas para se apresentar.

Em relação aos valores da moral, embora tradicionalmente a religião tenha tido grande influência, os cientistas, hoje, não podem se abster de pensar sobre tais assuntos. É importante que aceitem participar de debates junto a outros grupos sociais, inclusive os religiosos, claro. Os resultados da ciência interessam à sociedade como um todo. É necessário que o pesquisador, pense sobre isto e esteja apto a participar de discussões específicas. O cientista não pode assumir uma posição tecnicista; ele precisa desenvolver uma consciência mais elaborada sobre o que está produzindo e sobre o que isto pode causar.

A este respeito, a pesquisa com as células-tronco cabe como um bom exemplo: trata-se de uma investigação espetacular da ciência, que traz esperança para a qualidade de vida, cujos resultados interessam a uma série de grupos sociais, mas que exige uma série de reflexões, que devem partir tanto da comunidade científica, quanto dos diversos setores da sociedade. Então, o pesquisador desta área não pode simplesmente desenvolver uma pesquisa a qualquer custo; ele deve ouvir as outras vozes da sociedade e incorpora-las ao seu pensamento”.

Stevens Rehen

Pesquisador do Laboratório de Neurogênese e Diferenciação Celular (LANDIC), do Departamento de Anatomia da UFRJ.

"A questão da moral no procedimento de pesquisas com células-tronco deve ser discutida como qualquer outro problema sociocultural: com a clareza de que ele está inserido em um momento histórico. A moral varia muito com a pessoa, com o período, com a religião, por isso, nós devemos trabalhar com a bioética; se houver uma legislação clara, a questão da moral acaba sendo respondida dessa forma. O importante, no mundo, é ter uma comunidade que esteja sempre se auto-regulamentando com mecanismos que funcionem de forma a evitar procedimentos legalmente ruins, como clonar um indivíduo, por exemplo.

É claro que a comunidade científica tem que respeitar o ponto de vista da religião, mas nós vivemos numa sociedade plural. Se levássemos em conta todas as religiões, não faríamos quase nada, pois existem religiões que proíbem, por exemplo, a transfusão de sangue. Sendo o Brasil um país laico, ou seja, em que a religião não interfere na legislação, se é permitido que a comunidade científica desenvolva certa pesquisa, deve-se respeitar isso, assim como as crenças religiosas são respeitadas.

O que a ciência e os cientistas devem fazer, então, é trabalhar com um respaldo bioético, que significa ter uma legislação que respalde a pesquisa desenvolvida. Em muitos países, ou não se pode trabalhar, ou não existem leis de regulamentação, o que deixa tudo sem rumo, pois se pode fazer qualquer coisa ao mesmo tempo em que não se pode fazer nada. É importante estarmos em um país com leis que regulamentem certos tipos de procedimentos científicos, como o desenvolvimento de pesquisas com células-tronco, por exemplo. No Brasil, nós temos a Lei de Biossegurança, que autoriza o trabalho, seguindo uma série de regras.

A pesquisa com as células-tronco é importante porque elas são uma ferramenta para se entender melhor o desenvolvimento do ser humano. Então, devido à sua magnitude e por tratar-se de um processo contínuo, os métodos atuais de pesquisa com células-tronco embrionárias (as pesquisas com células-tronco provindas do líquido amniótico ainda são incipientes) não devem ser descartados, apesar da resistência de alguns setores da sociedade. Não digo que devemos ignorar as diferentes opiniões, mas, respeita-las sem abrir mão de nossos caminhos”.