• Edição 066
  • 14 de dezembro de 2006

Faces e Interfaces

Acesso perigoso a substâncias químicas de profissionais de saúde

Mariana Elia e Renata Magliano

Reconhecer algum tipo de dependência química é, geralmente, tarefa difícil de se conceber. Somos donos de nossos corpos e admitir uma perda de controle pode ser mais violento do que acabar propriamente com o vício. Para os profissionais de saúde, então, esse reconhecimento pode ser ainda mais complicado, pois sabem o risco que correm e é papel deles também trazer esse juízo para a sociedade.

São, entretanto, pessoas comuns, que estão submetidas aos deslizes como qualquer outro ser humano. Além disso, os médicos, farmacêuticos, nutricionistas e tantos outros profissionais da área têm mais acesso a medicamentos e substâncias químicas. Essa característica não poderia ser facilitadora de seu uso contínuo, ou pelo menos, mais freqüente? Por outro lado, reconhecer a dependência não acaba com sua credibilidade frente a outros profissionais e seus pacientes?

O Olhar Vital procurou dois profissionais de saúde: Leonel Pereira, anestesista, professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina (FM) e chefe do Serviço de Anestesiologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), Mônica Santos Rocha, neurocientista,  psicofarmacologista e professora do Departamento de Farmacologia Básica e Clínica do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), da UFRJ, para discutirem se há essa facilitação ou se a consciência dos prejuízos da dependência, além do trato diário com outros dependentes, afasta o profissional dessa possibilidade.

 

Leonel Pereira

Anestesista e professor do Departamento de Cirurgia da FM e chefe do Serviço de Anestesiologia do HUCFF

“Em minha especialidade (Anestesiologia) tem a maior incidência de casos de dependência, principalmente a sedativos e álcool. Além disso, detemos também o maior índice de suicídio da categoria médica. Aqui no Serviço de Anestesiologia, já tivemos quatro casos de dependência e um caso de suicídio. As causas para esse quadro podem ser muitas, inclusive trabalhos de pesquisa indicam que o não reconhecimento pela sociedade de que estamos inseridos na Medicina é um dos fatores predisponentes.

Acredito que a proximidade aos medicamentos facilita a dependência química, mas não apenas na Anestesiologia. Especialistas em Endoscopia, Colonoscopia também apresentam casos de vício em drogas que eles mesmos utilizam em seus procedimentos. Podemos refletir ainda se pessoas que têm inclinação para uma utilização desaconselhada de substâncias não venham procurar essas especialidades por conta do acesso, por exemplo.

O anestesista há algum tempo tinha uma postura de afastamento do paciente e do tratamento. Hoje isso vem mudando, mas, durante muito tempo, ele ficava à margem do acompanhamento clínico, não se remetia ao paciente e aparecia com a mesma rapidez com que desaparecia. Afinal de contas, quem procura um anestesista? Ele vem no momento do procedimento cirúrgico e vai embora em seguida.

Uma outra questão é que nós vivemos em uma aura de fatalismo muito grande. Estamos submetidos a muitas imprevisibilidades e vivemos constantemente no ‘fio da navalha’. Esse forte regime de pressão, onde não podemos ter um horário de trabalho regular e adequado, uma vez que estamos atrelados à disponibilidade do cirurgião, pode exaurir o anestesista. O recurso a drogas, que estão ao seu alcance, pode vir a ser uma válvula de escape.

Dessa forma, nossa preocupação atual é fazer a população conhecer o anestesista e de nos fazer reconhecer como médicos. Hoje estamos mais bem servidos de profissionais dessa área, a qualidade na formação aumentou e a visita pré e pós-anestésica é uma obrigação legal.

Para tratar do assunto devemos, primeiramente, definir os padrões de ocorrência; saber onde esses profissionais estão e quais são suas semelhanças além do vício. Assim, teremos parâmetros para definir uma abordagem entre as categorias de saúde e discutir como trabalhar a questão.

O principal, no entanto, é acolher esse colega de trabalho e auxiliá-lo na sua recuperação. A perda do vínculo será mais prejudicial, pois incitará o uso da droga e ele poderá colocar em risco seus pacientes. Dessa forma, é imprescindível confrontar a situação em uma estrutura que não o abandone, até porque esse é o local ideal de tratamento e um meio que abraça e favorece o reconhecimento do vício. A droga é a maior escuridão, porque dela é mais difícil sair”.

Mônica Santos Rocha

Neurocientista, psicofarmacologista e professora do Departamento de Farmacologia Básica e Clínica do ICB

“Existem muitos estudos da prevalência do uso de psicofármacos entre médicos, estudantes e profissionais da área de saúde no mundo todo. Por exemplo, no ano de 2006, um estudo entre estudantes de Medicina de quatro universidades públicas do Rio de Janeiro mostrou, através de questionário, que o uso de álcool e maconha é considerável, mas menos disseminado que em países desenvolvidos. Embora os questionários sejam anônimos, esse tipo de estudo depende da sinceridade dos entrevistados, e não se pode ter certeza da veracidade das informações.

É possível que os profissionais de saúde escondam algumas informações acerca do uso de drogas ilícitas, pois se sabe que a confiança no profissional de saúde é fundamental para um êxito no tratamento ou recuperação do paciente.

Estudos mostram que os profissionais tendem a se afastar de drogas em geral ainda durante a graduação, e isto pode estar relacionado ao conhecimento das ações farmacológicas, efeitos indesejáveis e riscos dessas substâncias. De fato, quando comparado o uso de substâncias psicoativas por estudantes antes e depois do ingresso na faculdade, mostra-se uma diminuição importante do uso de tabaco, maconha e cocaína ao longo da graduação.

Por outro lado, os profissionais de saúde são mais vulneráveis ao vício, devido ao acesso às substâncias como tranqüilizantes, psicoestimulantes, anestésicos etc, do que a população que tem acesso restrito. Os médicos podem então passar a utilizá-los de forma mais abusiva, e de fato, alguns estudos mostram que 37% deles prescrevem psicofármacos para si próprios, geralmente opióides e benzodiazepínicos, uma prática que pode aumentar o risco de dependência nesse grupo de profissionais.

Entretanto, os profissionais de saúde estão sujeitos aos mesmos fatores de risco (história familiar, eventos estressantes na vida do indivíduo etc) que a população em geral. E, embora com maior acesso a substâncias de abuso, a maioria dos estudos apontam para uma prevalência de uso de psicofármacos entre profissionais de saúde igual, ou inferior, à população em geral.

Algumas substâncias têm efeito por um período prolongado e, no caso do uso de alguns tranqüilizantes, que são metabolizados em substâncias ativas, os efeitos sedativos podem ser observados até três dias depois de uma única administração “fora do trabalho”. No caso de dependência química, os sintomas após a suspensão do uso (síndrome de abstinência) também são observados após a utilização recreativa. Portanto, as vidas dos pacientes poderiam sim ser postas em risco se considerarmos um declínio importante das habilidades cognitivas e motoras dos profissionais de saúde, o que é fundamental para o exercício da profissão.

Certamente, o bem-estar dos pacientes e profissionais de saúde seria aumentado com programas específicos para dependentes nesse segundo grupo. Alguns programas de acompanhamento de longo prazo mostram recuperação de 97% de médicos dependentes químicos.   Além disso, um programa de educação continuada de profissionais de saúde em abuso de substâncias psicoativas pode ser criado para que eles estejam mais bem preparados para previnir, identificar e tratar aqueles indivíduos em que a prevenção falhou.

Poderia ser adotado um protocolo para identificar estudantes na graduação com problemas de abuso de substâncias psicoativas e iniciar programas preventivos e de recuperação ainda durante a graduação. Entre os profissionais de saúde, poderia ser feito um programa nacional preventivo para sensibilizá-los dos perigos da auto-administração de fármacos sujeitos a controle pela agência nacional de vigilância sanitária”.