• Edição 052
  • 06 de setembro de 2006

Ciência e Vida

Hepatite C: na mira da saúde pública

Motivo de preocupação dos órgãos governamentais, a Hepatite C é hoje uma das principais causas de problemas de saúde. Ainda que sua incidência venha diminuindo consideravelmente, são as contaminações adquiridas antes da descoberta do antígeno do vírus que mobilizam os especialistas, na busca de um medicamento eficaz.

Mariana Elia

A Hepatite C é uma doença viral transmitida pelo vírus HCV, que matou semana passada o arcebispo de Mariana (MG), Dom Luciano Mendes de Almeida, vítima de câncer de fígado. Predominantemente assintomática essa doença caracteriza-se pela inflamação e necrose aguda do fígado. A principal via de transmissão é parenteral, quer dizer, através de tubos artificiais de injeção de substâncias, normalmente agulhas ou máquinas de transporte sangüíneo. Ao contrário do que se imagina apenas 2% dos contágios advêm de relações sexuais. “A transmissão por via sexual está mais relacionada ao vírus da Hepatite B, que tem uma concentração muito maior por mililitro”, explica Cláudia Maria Andrade Equi, médica do Serviço de Gastroenterologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF).

O grande avanço para o controle da doença ocorreu em 1989, quando foi descoberto o vírus causador desse tipo de Hepatite. A partir do estudo dos casos e do conhecimento do antígeno (partícula ou molécula capaz de deflagrar a produção de anticorpo específico) verificou-se a importância ampliação do controle nos bancos de sangue e das máquinas de hemodiálise. Com a Portaria nº 860/2002, da Secretaria de Assistência à Saúde (SAS), o Ministério da Saúde (MS) tornou obrigatória a verificação do sangue doado com exames anti-HCV. Esse foi o grande marco para a diminuição dos casos de infecção. Entretanto, a apresentação da Hepatite no organismo é uma das razões para que aproximadamente 170 milhões de pessoas no mundo e 1,25% da população brasileira sofram com a doença. “Os primeiros sintomas podem surgir de 15 a 20 anos após a contaminação. E mesmo assim, na maioria das vezes, eles surgem em decorrência do aparecimento de seqüelas no fígado. Pode ocorrer até uma sensação de fraqueza, febre baixa, mas são sintomas facilmente confundidos com uma gripe”, explica Cláudia Equi.

Os exames periódicos solicitados por empresas são a principal forma de conhecimento da doença, já que dificilmente há suspeita por parte do portador. Em 25% dos casos, entretanto, a origem é desconhecida, suspeitando-se da transmissão através de micro-fissuras por objetos cortantes comuns no cotidiano. Dessa forma, a Hepatite C prejudica aos poucos o órgão e se faz transparecer quando o dano já está causado. Por essa razão é que em 80% dos casos a doença se torna crônica (o mesmo número que, justamente, indica o índice de cura em casos de Hepatite B). “É o diagnóstico tardio e restrito que coloca a Hepatite desse tipo no centro de atenção dos órgãos de saúde. Descobrimos a doença quando já há muito que tratar”, esclarece a médica.

As principais complicações são as hemorragias digestivas, causadas pela Hipertensão-porta (aparecimento de varizes no esôfago), a Insuficiência Hepática, que pode ser aguda ou se tornar crônica, a Cirrose Hepática e o Câncer de Fígado. Segundo Cláudia Equi, o tratamento ainda não traz respostas satisfatórias e a evolução desses problemas varia de acordo com o estágio da doença ao início do tratamento. São bastante raros os casos de reincidência, mas é comum o paciente apresentar uma resposta boa durante os seis meses de tratamento e, ao final, manifestar novamente a presença do vírus. Nesse caso, não foi uma reincidência, mas uma renovação da mesma contaminação.

O tratamento

Atualmente, utilizam-se dois tipos de medicamentos: o Interferon-alfa e o Interferon peguilado ou Peginterferon (união de molécula de polietilenoglicol à molécula de Interferon, que ainda é recente no Brasil e não tem histórico clínico). O primeiro é distribuído pelo Ministério da Saúde e deve ser aplicado três vezes por semana. O segundo oferece melhor resultado, pois a ele é adicionado uma molécula de maior peso, o que o faz permanecer no organismo por um período mais prolongado. Ambos são associados a Ribavirina (nucleosídio sintético). O Interferon e a Ribavirina são anti-virais, no entanto, essa última atua potencializando a ação do Interferon, cujo objetivo é eliminar definitivamente o vírus. A duração do tratamento pode variar de seis a 12 meses, dependendo da resistência do HCV. Cláudia Equi explica que a eliminação do vírus, na fase aguda ou crônica, é fundamental para interrupção do processo de desfalecimento do fígado, mas os danos já causados não são reversíveis. “Por conta disso, quanto mais cedo o início do tratamento, mais preservado fica o órgão”, diz a médica.

A Portaria 860/2002 define o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para o Tratamento da Hepatite Viral Crônica C, reconhecendo critérios de diagnóstico, tratamento e dispensação de medicamentos. Esse documento prevê o mecanismo de inclusão do programa de tratamento, em que os pacientes devem possuir determinadas características, algumas específicas para o tratamento com o Interferon-alfa Peginterferon.

Uma outra característica, que é também responsável pela dificuldade de tratamento, são as variações gênicas do vírus. O HCV apresenta seis tipos diferentes de genótipos, sendo os tipos 1, 2 e 3 os mais freqüentes no país. Infelizmente, o tipo 1 é o mais resistente ao Interferon e o mais endêmico no Brasil, com cerca de 60% de predominância. Além disso, essas variações, causadas pela grande mutabilidade do vírus RNA, dificultam a produção de uma vacina. Para o diagnóstico adequado, é necessário fazer o exame PCR (Reação da Cadeia da Polimerase), que indicará se a Hepatite se tornou crônica ou ainda é aguda, pois o marcador anti-HCV não determina o avanço da doença.

“É importante destacar que a distribuição do Interferon-alfa pelo governo foi responsável por um avanço muito grande no combate a doença. Hoje ele é produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que também já está desenvolvendo uma molécula semelhante a do Interferon Peguilado. Com isso, houve um barateamento do primeiro e, provavelmente, haverá para o segundo”, ressalta Cláudia Equi, que avalia, ainda, a necessidade de um medicamento que traga 100% de cura.

Sabe-se, contudo, que a maioria dos casos tratados hoje são decorrentes de uma época onde se desconhecia o antígeno e não havia uma campanha de controle. “Ainda estamos cuidando de uma população com histórico transfusional de risco”, afirma a Cláudia. Atualmente, mais de 30 mil brasileiros necessitam de alguma forma de filtragem renal e os hemofílicos precisam de uma grande quantidade de plasma doado. Há ainda o perigo de adquirir o vírus com a colocação de piercings, feitura de tatuagens em locais que não utilizam materiais descartáveis e alicates de unhas em manicures. Se, portanto, houver o empenho de limpeza rigorosa das máquinas de hemodiálise e da segurança dos profissionais de saúde, que manuseiam agulhas e seringas, além de uma conscientização sobre os cuidados com esses materiais, estará mais próximo o fim das transmissões do vírus da Hepatite C.

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